sábado, 20 de setembro de 2014

Os pavões de Santa Maria

Era um final de tarde agradável de calor ameno que se fazia sentir no Parque de Cascais. Ainda sequer eram 18:00 (de Verão o Parque encerra as suas portas mais tarde), ecoavam ainda pelos jardins e balouços os gritos felizes e barulhentos dos meninos, quando surgem três pavões engalanados, em fila, caminhando em direcção ao portão que dá para a Casa de Santa Maria, esta sobranceira ao mar, também calmo nessa amena tarde.

- Vamos, vamos que chegamos tarde! Dizia a pavoa.

- Calma, não há curso de português hoje em Santa Maria. Retorquiam os outros dois pavões.

- Mas não quero perder nada da cerimónia que está prevista para as 18:15… continuava a pavoa.

- Ora, achas que te deixam entrar a ti? Toda desajeitada e atarracada, com essas penas horrorosas marrons? Disse o pavão de plumagem exuberante, logo aproveitando para abrir o seu majestoso leque. E continuou:

- A mim, sim, vão deixar-me entrar no farol. Sou magnificente, símbolo de imortalidade. Certamente vão querer ter-me por perto aquando da cerimónia. Eu que acompanho a deusa olímpica, ficarei bem perto da Daniela.

- Cala-te! Retorquiu irritada a pavoa.

- Gabas tanto essa cauda e esqueces-te a quem deves esses olhos! Pobre Argus, pobre Io… Não, não creio que sejas um bom presságio para a boda. Morte e ciúme não combinam com Amor e Pureza!

- Pois não! Concordo plenamente. Insurgiu-se o pavão branco e logo retorquiu altivo:

- Esperem por mim. Boda alguma, muito menos hollywoodesca poderá ser abençoada sem a minha presença. Eu sim, sou o verdadeiro símbolo perfeito do Amor, Pureza, Fertilidade e Prosperidade.
  
- Vamos, vamos rapazes, repetiu insistentemente a pavoa, já na bateria superior do farol. Olhem, vejo ali em baixo a chuppah, tão linda, cheia de flores…

- Mas não é aqui no farol de Santa Marta! Disseram em uníssono os dois pavões.

- É aqui ao lado do farol, no hotel com o mesmo nome!

Lá em baixo o azul do céu límpido unira-se ao azul do mar calmo, parecendo que todos os deuses conspiravam num cenário de sonho.

- E agora? Como vamos nós atravessar essas rochas? Dizia o pavão branco.

- Não quero sujar nem molhar o meu traje branco! Voltemos para trás.

- Rápido. Disse a pavoa. – Há um portão do lado da rua, em frente ao portão de Santa Maria, que dá para o hotel.

E lá foram eles, atravessando todo o farol, em passo acelerado, sob os olhares intrigados de quem a tudo isso assistia: transeuntes, turistas, convidados para a boda, jornalistas… até o segurança rechonchudo e de cabelos brancos de Santa Maria, não entendia onde desejava ir tão peculiar grupo.

A pavoa parecia ter assumido o comando:

- Já os vejo… que linda vai a noiva no seu maravilhoso vestido caicai branco, acompanhada pelo seu pai.

- Lindíssima e de branco, como eu! Retorquiu inchado de vaidade o pavão branco. Eu é que acompanho Hera e abençoo casamentos!

- É pena o bouquet… desdenhou ciumenta a pavoa. – Tão singelo… tinha falado comigo e tinha-lhe colhido umas lindas flores em Santa Maria. Mas logo a sua atenção se desviou da noiva para…

- Esperem lá… aquele não é o Eric? Tenho de lhe pedir um autógrafo, rapazes!

- Está doida a galinha tonta! Dizia o pavão das cores exuberantes. – Calem-se, deixem-me ouvir o que diz o noivo aos jornalistas… Ah, percebi… “que agora tem de os deixar porque tem de ir casar-se.”

Lá dentro, ouviam-se os primeiros acordes de All of me de John Legend e tudo parecia feito de sonho.

Ouviam-se suspiros e a pavoa sussurrava:

- Olhem os convidados, isto parece a passadeira das vaidades. Foi feita para nós, vamos!

- Então vamos. Disseram os pavões. – Nós primeiro, “onde canta pavão, não canta pavoa.”

- Não é pavão nem pavoa, corrigiu a pavoa de penas marrons, é galo e galinha e esse dito ridículo e machista não consta da minha lista de provérbios.

Assim discutiam quando irrompeu à sua frente um dos seguranças do hotel.

- Xo, xo, vão-se lá embora de volta para o parque, ninguém vos convidou! Ou melhor, deixem lá a Chuppah e vão antes comer as flores de Santa Maria. Xo, xo…

19-09-2014






sábado, 13 de setembro de 2014

O meu soldadinho de chumbo

Paulinha gostava particularmente d’O Capuchinho Vermelho e d’O Soldadinho de Chumbo.

Embora o primeiro conto a acompanhasse durante toda a sua vida, o segundo, ficaria escondido, como que soterrado num baú de memórias ainda por abrir.

Era uma manhã de sábado, como tantas outras, com a diferença de terem decorrido mais de quarenta anos. À mesa do pequeno-almoço (para os conterrâneos de Paulinha, matabicho), ouvia enternecida as descobertas do seu pequeno homenzinho (como gostava de lhe chamar) de 8 anos, o seu geniozinho, não da lâmpada (esta estava agora ultrapassada) mas da informática.

- Sabes quais são os contos que mais gosto, mãe? Perguntara-lhe convicto do que iria afirmar.

- Não!

- São: Os 3 Irmãos e o Soldadinho de Chumbo.

- Porquê?

- Os 3 Irmãos (entretanto contara-lhe a história) porque nos conta uma lição!

- Ah, queres dizer uma moralidade: “Não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem a ti.” – Acrescentou.

- E o Soldadinho de Chumbo, meu amor, porquê? Perguntara-lhe, num misto de ternura e curiosidade.

- Por isso mesmo que disseste, “meu amor”, porque é uma história muito bonita de Amor!

Meu Deus, há quantos anos que não ouvira falar n’O Soldadinho de Chumbo… caíra em desuso? O Romeu & Julieta infantil… a sua primeira abordagem ao romantismo… Paulinha, contadora de histórias experiente (ou não fosse mãe pela segunda vez) ainda tentou, em vão, buscar no seu baú de histórias, mas não encontrou o soldadinho…

- Queres contar-me? Murmurou hesitante.

- Não sabes?

- Desculpa, não me lembro dela.

Então, por palavras próprias de um rapazinho de 8 anos, expressando-se numa linguagem coordenativa, lá foi desdobrando o novelo com as peripécias de um soldadinho de brinquedo, que se apaixonara por uma boneca bailarina, os quais ganhavam vida a partir da meia-noite!

E, no final remataria:

- Nas cinzas encontraram um coração de chumbo!

Agora sim, Paulinha recordara-se de uma das histórias mais tocantes da sua infância: à memória chegara-lhe a imagem de um soldadinho de chumbo navegando dentro de um barco de papel… a imagem de um coraçãozinho de chumbo, resultado da fusão do soldadinho brinquedo com a boneca bailarina.

Enquanto os fios da memória se articulavam, os seus olhos humedeciam. Ainda os tentou esconder do filho, dizendo-lhe: - Mas e afinal, qual é a lição deste conto?

- Não sei, mãe. Não percebi.

- Eu ajudo: o Amor tudo vence, mesmo o fogo; o Amor é Uno e indivisível.

- Queres dizer que o soldadinho e a bailarina, ficaram um só?

- Sim, é isso mesmo, unidos para sempre.

- Mãe, também não percebo porque estás a chorar?

- Eu também não! És um fantástico contador de histórias, mas se calhar, será melhor dedicares-te antes à informática… - Dissera-lhe enquanto o abraçava.

- Porquê?

- Para não chorares, nem fazeres chorar os outros.

- Não percebo…


13-09-2014





segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Parece ter ido tudo de férias...

Parece ter ido tudo de férias... a começar pelo calor irregular, fraco e insípido deste inconstante agosto. "- Mãe, agosto é com "a" minúsculo, porque tens vários agostos!!" diz-me o pequenito! mas realmente, apesar de gostar de conservar as maiúsculas dos meses do ano, o agosto do presente 2014 deixa muito a desejar! e portanto, (ainda que o "novo acordo ortográfico", preveja que possamos escrever com letra maiúscula, sempre que pretendemos enfatizar positivamente algo, tal não é o caso!) escreverei assim com letra minúscula, em sintonia!

O país (também com letra pequena, de acordo com a pequenez do momento) parece ter ido de férias: as suas gentes, a honestidade e honradez daqueles que comandam o seu destino político, económico e financeiro, timoneiros de um barco cada vez mais à deriva, (infelizmente, há vários anos) tal como os meus sentimentos, neste pequenino mês de agosto!
Fazia-nos falta outro Infante D. Henrique!

Tenho saudades dos Verões quentes; da minha filha que não está comigo; das minhas amigas do antes e do depois; sinto saudades dos meus alunos que regressaram aos seus países de origem; saudades tenho das minhas colegas de curso, e das outras; sinto falta da bondade e doçura incondicionais da minha avó; fazem-me falta as histórias mitológicas que o meu pai me contava, da sua inteligência, da sua genialidade fora de época... afinal, nós portugueses temos saudades de tudo, do que passou e daquilo que ainda há-de vir... 

Parece ter ido tudo de férias... algumas delas, para não mais voltar, tal como os jovens (alguns emigraram, outros entretidos com os inúmeros festivais que pululam em agosto, neste jardim à beira-mar plantado)... por falar em jardim... até as flores parecem ter ido de férias... está em minha casa, de férias forçadas a minha mãe (à pala de umas obras inevitáveis) e aparentemente ninguém se lembra de regar as plantas que deixou para trás; coitadas, agarradas à terra de um jardim comum (era ela quem as regava!)... salvaram-se alguns vasos que pode trazer! Foi de férias a solidariedade, o bom senso... Ó triste país, se não és capaz de salvar algumas flores, se não consegues salvar os indefesos animais abandonados neste agosto cruel, como serás tu capaz de salvar as tuas crianças e jovens? Como conseguirás tu salvar os teus monumentos abandonados? 

Parece ter ido tudo de férias: a cultura, as letras, o amor ao próximo, os valores mais básicos, a crença num país melhor... estou triste, sinto-me triste com a incompreensão de quem não entende que desemprego não é uma opção de vida! é antes, uma moléstia que nos consome lentamente, até que mata, pelo menos a alma.

Não consigo escrever com sombras no coração, perdoem-me quem segue este blog... por isso, a "Paulinha", o "Salvador", as fadas e princesas, parecem ter ido de férias! Golfinhos, faróis e faroleiros, parecem ter sido engolidos pela pequenez deste agosto.

Parece ter ido tudo de férias, incluindo a inspiração e a alegria de escrever (só consigo escrever quando estou feliz); só não foi de férias a mágoa que cobre a minha alma. 

sexta-feira, 18 de julho de 2014

O golfinho e o filho do faroleiro

Reunidos dentro do farol, sentados na sua base quadrangular, com as perninhas à chinês, Ana aguardou que somente se ouvisse o silêncio dos olhos esbugalhados dos gaiatos imersos na curiosidade. Lá fora, apenas o murmurar das ondas beijando as rochas acariciavam o farol.

Era uma vez um jovem rapazinho, cujo pai era faroleiro no Farol de Santa Marta.

Em tempos idos, em que a luz do farol ainda funcionava a azeite, o faroleiro Ezequiel vivia com o seu filho pequeno, numa humilde casinha, mesmo ao lado do farol.

Era um trabalho bastante solitário, tal como solitárias eram também as brincadeiras do jovem rapazinho.

Um dia, estava o pequeno a atirar pequenas rochas, conchas e conchinhas ao mar, quando de súbito, avistou um golfinho que parecia nadar em sua direcção. Parecia querer chamar a atenção do petiz, pois saltava e nadava alegremente em círculos. Então o menino, sem medo, nadou até o animal e, gradualmente, foi ganhando a sua confiança. Até que o golfinho parou... foi então que o menino aproveitou para saltar para o seu dorso.

Juntos nadaram nas águas azuis-esverdeadas do oceano, e cortando as ondas passaram rente às pequenas embarcações dos pescadores, até que chegaram ao Farol da Guia.

Já o sol se deitara sobre o Atlântico, quando regressaram ao Farol de Santa Marta.

O menino agradeceu ao golfinho pela encantadora tarde e prometeu-lhe regressar todos os dias, enquanto estivesse de férias.

Porém, um desses dias, o menino adoeceu e teve de permanecer em casa, durante bastante tempo.

O golfinho não se esquecera do menino e insistentemente regressava ao local combinado, na esperança de encontrar o seu pequeno amigo humano. Mas o menino não aparecia…

Então o golfinho adoeceu e desatou a definhar… quase moribundo, nadou sem forças até ao farol, como se da última vez se tratasse, esperando ver o seu companheiro de aventuras…

Felizmente, o menino recuperou e nesse mesmo dia pediu ao pai, o faroleiro Ezequiel, que o deixasse brincar lá fora junto ao mar.

Quando o menino avistou o golfinho e se apercebeu que este nadava com grande dificuldade, precipitou-se ainda meio vestido para as ondas, nadando o mais depressa que podia em direcção ao seu amigo marinho. Logo o abraçou ternamente, prometendo dele cuidar. Quando o sal das suas lágrimas se confundiram com o da água do oceano, Tétis, a deusa do mar, compadeceu-se com o amor do rapazinho por um dos seus golfinhos.

Do alto do Farol de Santa Marta, Ezequiel o faroleiro pareceu avistar um menino no dorso de um lindo e alegre golfinho cinzento prateado nadando em direcção ao infinito.

Julho 2014 / Ana Paula Fogaça


segunda-feira, 14 de julho de 2014

A viagem ao Farol de Santa Marta continua…

Uma vez chegados ao farol mais emblemático de Cascais, aguardava-os Ana, a monitora museológica.

- Sejam bem-vindos ao Farol-Museu de Santa Marta! - Disse Ana, que os recebera na antiga bateria inferior.

Muito ordeiramente, par a par, lá foram em fila indiana conhecer o primeiro núcleo museológico, dedicado aos faróis portugueses. Num misto de tecnologia e História, Ana, lá ia explicando, perante as bocas abertas dos gaiatos, o que eram as lentes de Fresnel. Mereceu especial destaque, o painel do aparelho óptico central que estivera no Farol das Berlengas, com os seus 3,70m de altura. Quando Ana se colocou por trás da gigantesca lente, e os petizes viram a imagem da monitora aumentada, foi grande a gargalhada geral. Talvez tivesse sido esse o momento mais marcante, recordara mais tarde Salvador.

Seguidamente, passaram ao segundo núcleo museológico, dedicado à passagem de Santa Marta, através dos tempos, de forte a farol, até museu, mais recentemente.

Salvador bebia com muita atenção tudo o que Ana dizia sobre o antigo ofício de faroleiro: os instrumentos que se usara, o registo minucioso no seu diário das ocorrências, quer em dias de nevoeiro, como em noites iluminadas pelo brilho das estrelas.

Então, já sabem para que servem os faróis? - Perguntara-lhes Ana, despertando-lhes o interesse. - Quem acende e desliga a luz do farol? 
Sabem, os núcleos museológicos eram antigamente, as casas das famílias de faroleiros que por cá viviam.

Finalmente, subiram à bateria superior e daí puderam ver desenhado entre o mar e a marina, o farol mais bonito de Cascais.

- Tão alto! - Dizia Salvador, tentando avistar a lanterna vermelha do farol.

- Pois é Salvador, é alto, são quase vinte Salvadores empoleirados uns nos outros… dizia Ana, e prosseguia conduzindo o grupo que se precipitava para a porta do farol. E continuava: - Querem subir lá acima? Tenho tanto ainda para vos contar… mas agora, vamos subir, devagar e com cuidado, por favor… venham!

A vista lá em cima era tão deslumbrante, tão deslumbrante, que Salvador, já não via somente o que via… no varandim vermelho do farol, olhava no horizonte, onde o azul do mar se encontra e se confunde com o azul do céu, a linha arredondada da terra e sonhava… mas Ana, tal como a professora Elisabete, tantas vezes fizera na sala de aula, colhera-lhe os pensamentos e fazia-o regressar…

 - Salvador, vem, desce, vamos agora escutar uma história, queres?

(continua)

Julho, 2014.







quinta-feira, 10 de julho de 2014

Viagem ao Farol de Santa Marta

Este pequeno conto foi em 2011, dedicado aos meninos da Educadora Carla, da Escola Nossa Senhora de Assunção de Cascais.

Decorridos três anos, dedico-o também às minhas queridas colegas do Farol de Santa Marta, em homenagem aos dias felizes que por lá vivi.

Embora tivesse nascido em Cascais, o Salvador nunca antes vira um farol.
Tinha sido criado, e vivia ainda em Alcabideche, terra dos moinhos do poeta árabe Ibn Mucana, quando um dia, na escola, a sua professora anunciara aos meninos da sua turma do 2º ano, uma visita muito especial: iam ao farol mais emblemático de Cascais! Sim, esse mesmo, o Farol de Santa Marta!

Na sala de aula, reinava a excitação, e enquanto a professora Elisabete falava, Salvador já não a ouvia… fantasiava como seria esse farol, de que forma, de que cor… ouvira dizer que era alto. Hum… certamente não tão alto como os moinhos que se habituara a ver da janela do seu quarto, tendo como pano de fundo os contornos da serra - pensou.

Quem viveria nele? Que histórias teria esse farol para contar? O avô Manel, dizia sempre, que faróis eram como “vigilantes da noite, sentinelas do mar”: manhãs de nevoeiro, noites de tempestade, navios em apuros, naufrágios que não chegaram a acontecer, horas de solidão, sou comandante, sou capitão, sou pirata espanhol num galeão à deriva? Não, sou apenas faroleiro num farol encantado, preso nas ondas de um mar salgado.

Assim velejava o pensamento de Salvador, ligeiro como um barco de velas pandas, desses que vemos ao largo da baía de Cascais em tardes de Estio e vento, quando subitamente, é arrancado do seu sonho, pela voz da professora Elisabete:

- Percebeste, Salvador, as regras de bom comportamento dentro de um museu?

- Museu?! - perguntou admirado Salvador. Para que está a professora a falar de um museu?! Não íamos a um farol? - Interrogou-se Salvador.

Eis chegado o grande dia! Um dia, que amanheceu cedo, bem cedinho, e com ele, os primeiros raios de sol, atravessaram o vidro da janela do quarto de Salvador, despertando-o do seu sonho.

De pequenos olhos castanhos, brilhantes de curiosa avidez, volta a perguntar-se, como será esse farol…

Estão já reunidos todos os meninos do 1º e do 2º ano; os do 3º e 4º ano iriam num outro dia. Aos pares, em fila, à entrada do autocarro, lá iam, subindo ritmadamente os degraus daquele, sob estreita vigilância das educadoras.

- Bom dia, Sr. motorista! - Diziam bem alto, mal avistavam a habitual figura nessas andanças dos passeios escolares que fazia as delícias da pequenada - era Carlos, o motorista!

Depois de devidamente acomodados, sem esquecer as normas de segurança, os gaiatos despediam-se dos seus pais que permaneciam teimosamente, coração na boca, sem despregarem os olhos do autocarro… este, ia ficando cada vez mais pequeno, até ser totalmente engolido pelo horizonte.

Na lembrança recente dos pais, ficavam pequenitos braços que se agitavam, pequenitas mãos que se despediam alegremente em múltiplos acenos e beijos compartidos e atirados através dos vidros das janelas do autocarro. Sorrisos e gargalhadas largas, estampadas em rostos que não cabiam em si de felicidade.

A viagem não demoraria mais do que 20 minutos, tempo mais do que suficiente para os miúdos alegrarem ainda mais a manhã de Carlos, o motorista.

- 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 - Viva a professora Elisabete!

- Olhem, olhem meninos, estamos a chegar à Boca do Inferno! – Dizia a professora Elisabete.

- Que mar tão bonito! - Exclamaram quase todos em uníssono.

Alguns metros mais, e eis que surgia como num postal desenhado, num esporão rochoso, vigilante entre palmeiras e o mar azul esverdeado, o Farol de Santa Marta.
De corpo robusto prismático, numa torre quadrangular de alvenaria branca, revestida a azulejos, com as suas duas faixas azuis inconfundíveis, elevando-se a 20 metros, quase tocando o azul do céu com a sua lanterna vermelha.

O deslumbramento rapidamente se apodera de Salvador e dos seus colegas. Todos gritaram a uma só voz, entre ruidosas palmas: - Viva o Farol de Santa Marta!


Cascais, 2011


domingo, 6 de julho de 2014

Mangas verdes com sal [ou de como é bela a mulher macua]

Se havia algo de que Paulinha se recordava da sua infância, era do inesquecível e acre sabor, na boca a arder, das mangas verdes acabadinhas de apanhar da árvore, repartidas a canivete.

Nunca as haveria de provar, senão pela mão de Cristina, nome demasiado ocidentalizado, da sua macaiaia[1] preferida, sendo no entanto, bastante comum entre estas.

Cristina, era certamente, ainda muito jovem, menina-mulher macua[2] de origem, cuja característica principal, além da sua peculiar beleza assumida, era o seu encantador sorriso aberto e generoso, aliás, como tudo naquela Terra.

De pele escura, brilhante como ébano, exalando um suave odor a coco, detinha um belo rosto africano, invulgarmente aveludado pelo mussiro[3]. No meio, um par de olhos negros carvão, tão brilhantes como o Cruzeiro do Sul.

Enrolava-se em capulanas[4] de padrão colorido, sabiamente cingindo a cintura e coxas, deixando mostrar sempre uma graciosa blusa de mangas curtas, certamente de tradição muçulmana.

Um lenço, condizente com a capulana, irrepreensivelmente colocado à maneira macua, ocultava um cabelo africano trabalhado com tranças pequenas.

Enfeitando o pescoço e os braços, colares e pulseiras de inúmeras missangas de cor viva, indiciavam os ritos de iniciação feminina.

Nos pés, quando não se encontravam desnudos, trazia as características sandálias plásticas, abertas, também coloridas, compradas no bazar[5], que teimavam em gretar-lhe os calcanhares, quer se tratasse da época seca ou da das chuvas.

Ficava doida de alegria, sempre que a Mãe Terra a beijava com as suas lágrimas cálidas; então, Cristina descalçava-se e dançava sob a chuva tropical; erguia os braços e sentia o cheiro fértil da terra molhada. Paulinha aprendera com ela e imitava-a.

Aprendera a subir agilmente às mangueiras, a apanhar as mangas ainda verdes e a comê-las com sal.

- Minina, passop[6], não pode comer tanto assim…despois, vai ficar com dor na barriga… e D. Isabel, vai ralhar!

Aprendera com Cristina histórias, muitas histórias, não dessas de fadas e princesas, mas do seu povo; Sobre como tinha sido criado o mundo e o homem… nos primórdios, tudo tinha acontecido no Monte Namuli[7], a norte da Zambézia.

Aprendera em como o seu povo ancestral macua, venerava esse monte, a água das chuvas e dos grandes lagos, como o Niassa[8].

Paulinha, escutava-a encantada, com enorme êxtase, maior do que aquele que sentia quando ritualmente, ao fim do dia, D. Isabel lhe perguntava: - O Capuchinho Vermelho ou a Gata Borralheira?

Mas Cristina, mulher-menina, também gostava e queria aprender; ouvia atentamente as letras que Paulinha desenhava na terra húmida do quintal…

- Não, Cristina, não sei ainda, como se escreve o teu nome, vamos ter que perguntar à avó…


Julho 2014.





[1] Empregada da menina, babá.
[2] De etnia macua, tribo de origem banta, a norte de Quelimane.
[3] Massa branca e espessa, embelezante do rosto das mulheres de etnia macua, feita a partir do caule de uma planta com o mesmo nome.
[4] Pano tradicional Moçambicano com que as mulheres cingem o corpo; pode ser usado como saia.
[5] Mercado.
[6] Cuidado.
[7] Monte Namuli, com cerca de 2.419 m de altura, situado na Serra do Gurué, a norte da província da Zambézia., 
[8] Lago Niassa, localizado no Vale do Rift, entre o Malawi, a Tanzânia e Moçambique.