domingo, 6 de julho de 2014

Mangas verdes com sal [ou de como é bela a mulher macua]

Se havia algo de que Paulinha se recordava da sua infância, era do inesquecível e acre sabor, na boca a arder, das mangas verdes acabadinhas de apanhar da árvore, repartidas a canivete.

Nunca as haveria de provar, senão pela mão de Cristina, nome demasiado ocidentalizado, da sua macaiaia[1] preferida, sendo no entanto, bastante comum entre estas.

Cristina, era certamente, ainda muito jovem, menina-mulher macua[2] de origem, cuja característica principal, além da sua peculiar beleza assumida, era o seu encantador sorriso aberto e generoso, aliás, como tudo naquela Terra.

De pele escura, brilhante como ébano, exalando um suave odor a coco, detinha um belo rosto africano, invulgarmente aveludado pelo mussiro[3]. No meio, um par de olhos negros carvão, tão brilhantes como o Cruzeiro do Sul.

Enrolava-se em capulanas[4] de padrão colorido, sabiamente cingindo a cintura e coxas, deixando mostrar sempre uma graciosa blusa de mangas curtas, certamente de tradição muçulmana.

Um lenço, condizente com a capulana, irrepreensivelmente colocado à maneira macua, ocultava um cabelo africano trabalhado com tranças pequenas.

Enfeitando o pescoço e os braços, colares e pulseiras de inúmeras missangas de cor viva, indiciavam os ritos de iniciação feminina.

Nos pés, quando não se encontravam desnudos, trazia as características sandálias plásticas, abertas, também coloridas, compradas no bazar[5], que teimavam em gretar-lhe os calcanhares, quer se tratasse da época seca ou da das chuvas.

Ficava doida de alegria, sempre que a Mãe Terra a beijava com as suas lágrimas cálidas; então, Cristina descalçava-se e dançava sob a chuva tropical; erguia os braços e sentia o cheiro fértil da terra molhada. Paulinha aprendera com ela e imitava-a.

Aprendera a subir agilmente às mangueiras, a apanhar as mangas ainda verdes e a comê-las com sal.

- Minina, passop[6], não pode comer tanto assim…despois, vai ficar com dor na barriga… e D. Isabel, vai ralhar!

Aprendera com Cristina histórias, muitas histórias, não dessas de fadas e princesas, mas do seu povo; Sobre como tinha sido criado o mundo e o homem… nos primórdios, tudo tinha acontecido no Monte Namuli[7], a norte da Zambézia.

Aprendera em como o seu povo ancestral macua, venerava esse monte, a água das chuvas e dos grandes lagos, como o Niassa[8].

Paulinha, escutava-a encantada, com enorme êxtase, maior do que aquele que sentia quando ritualmente, ao fim do dia, D. Isabel lhe perguntava: - O Capuchinho Vermelho ou a Gata Borralheira?

Mas Cristina, mulher-menina, também gostava e queria aprender; ouvia atentamente as letras que Paulinha desenhava na terra húmida do quintal…

- Não, Cristina, não sei ainda, como se escreve o teu nome, vamos ter que perguntar à avó…


Julho 2014.





[1] Empregada da menina, babá.
[2] De etnia macua, tribo de origem banta, a norte de Quelimane.
[3] Massa branca e espessa, embelezante do rosto das mulheres de etnia macua, feita a partir do caule de uma planta com o mesmo nome.
[4] Pano tradicional Moçambicano com que as mulheres cingem o corpo; pode ser usado como saia.
[5] Mercado.
[6] Cuidado.
[7] Monte Namuli, com cerca de 2.419 m de altura, situado na Serra do Gurué, a norte da província da Zambézia., 
[8] Lago Niassa, localizado no Vale do Rift, entre o Malawi, a Tanzânia e Moçambique.

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