sábado, 28 de junho de 2014

O ciclone

Decorria o ano de 1972 ou talvez de 1973, de um qualquer mês entre Outubro a Março… difícil precisar transcorridos tantos anos… Quelimane amanhecera mais uma vez, embalada pela brisa suave do vento entre as folhagens dos seus altos coqueiros; o seu rio, baptizado pelo Gama de Bons Sinais, despertara sob os primeiros raios ainda mornos do astro rei, e Paulinha, como de costume, acordara muito depois do primeiro canto do galo mor da capoeira do quintal de D. Isabel, já depois de esta ter tomado o seu matabicho[1] habitual… era o acordar habitual de mais um dia, o despertar normal de mais um dia de escola para Paulinha, e de trabalho para a sua avó.
Em Quelimane, as manhãs madrugam cedo, sendo habituais alguns eventos naturais extremos, como trovoadas fortes e chuvas torrenciais. No entanto, nada anteciparia o cenário de algumas horas mais tarde, apesar do rufo dos batuques[2] que se faziam soar há muito, noite fora.
- Paulinha, despacha-te, vamos chegar atrasadas! O teu tio António hoje não nos pode levar, temos de ir a pé… dizia D. Isabel, com grande paciência. Pega na tua pasta da escola e vamos!
- Senhora, deixe a minina hoje em casa a descansar… irrompeu Maria, a macaiaia[3] de Paulinha… e logo, o mainato[4] Isaías:
 - Minha Senhora, não vá hoje ao hospital!
- Mas o que é que deu em vocês? Replicou admirada D. Isabel? Logo hoje que a Paulinha não está a fazer birra para não ir à escola… e eu tenho de ir trabalhar, pois aquele Hospital… a minha cozinha precisa de mim… os doentes precisam de mim! Mas eles já não a ouviam, pois D. Isabel saíra apressadamente porta fora, levando a sua habitual e carismática sombrinha amarela consigo. Paulinha, com o último botão da sua bata branca por abotoar, seguira-lhe os passos, não se esquecendo da sua adorada pasta escolar com a “Lili e o Viralata”[5] nela pintados.
Entretanto, Pinóquio[6] habituado pacientemente a aguardar pelas suas donas, a nova e a velha, parecia inquieto nessa manhã…
No caminho para a escola [a mais linda que alguma vez Paulinha veria em toda a sua vida] como habitualmente, D. Isabel cumprimentava todos, sendo por todos cumprimentada, em sinal de deferência é certo, mas também por merecer a simpatia colectiva. Ao fundo da rua da sua casa, numa esquina, ficava o monhê[7] Choitran, onde Paulinha adquirira o hábito de comprar por uma quinhenta[8] a não menos habitual muchapala.[9]Fora da loja, ao ar livre amontoavam-se as caixas de bananas, ananases, pêras-abacate, mangas, papaias, cocos e tâmaras, entre tecidos coloridos para sáris[10] e bijuterias variadas. A fruta exalava um odor adocicado que contrastava com outros mais quentes e fortes como o açafrão.
- compras-me uma bolacha, compras?
- Agora não, Paulinha, no regresso da escola. Vamos…
Prosseguiram em passo apressado, até que avistaram vindo em sua direcção, na sua ginga[11]o Julião, o ajudante de fiel do armazém do Hospital de Quelimane.
- Senhora, senhora, Julião tratou de tudo, levou as batata, as cebola, o azeite, as garrafas do leite, tudo aquilo que faz falta para a cozinha… a Maria Rita, a nova empregada, sabe ler e vai separar as ementa das dieta das outra… e Julião também não vai esquecer de partir os bloco de gelo para as botija dos doentes… senhora, não precisa ir hoje!
- Mas vocês estão loucos?! Bradara D. Isabel, visivelmente irritada. Em 30 anos de serviço, nunca faltei por dá cá aquela palha, porque carga de água haveria hoje de ser diferente? Vai lá andando que vou só deixar a miúda na escola e já lá vou ter… anda, despacha-te!
Avistava-se agora a escola de Paulinha, a escola primária Vasco da Gama, linda, toda branquinha, de telhado avermelhado ondulado, escadaria clássica defronte ao edifício principal que concentrava os serviços administrativos, este último ladeado por outros dois enormes edifícios, cujas salas em comboio detinham extensas varandas cobertas no exterior, e no interior, além das carteiras de bancos em madeira escorridos comuns, quadros de ardósia e demais material escolar. No tecto, as características ventoinhas com as suas enormes pás giratórias que afugentavam o calor abrasador. De uma maneira geral, a escola primava por linhas sóbrias, a lembrar a arquitectura chã, mas ao mesmo tempo, de uma beleza externa quase barroca. Um dos edifícios estava destinado às meninas e outro, aos meninos. Atrás, entre ambos, um enorme pátio térreo com três enormes mangueiras, tendo uma delas, a preferida de Paulinha, uma copa enorme. Quantas brincadeiras, correrias e segredos guardavam as sombras dessas árvores, interrompidas apenas pelo toque do sino que ecoava do edifício central, pesadamente e vagarosamente tocado pela velha contínua, D. Elisa. A velha contínua [talvez não fosse assim tão velha!] de bata branca e de lenço macua[12] à cabeça, era altíssima e possuía duas pernas grossas como troncos de palmeira que pesadamente arrastava, contrastando com a agilidade de seus longos braços. Naquela manhã, tocava vigorosamente o sino e desviando o olhar para baixo dizia a Paulinha: - Mas o que  minina está aqui a fazer?! Porque não está junto das suas companheiras e da sua profissora?
Não era a primeira vez que Paulinha fugia da sala de aula, em direcção à casa do sino, empoleirando-se num banquinho de madeira, tentando tocar o sino de forma a antecipar a hora do intervalo. Não era a primeira vez que era repreendida por tentar fazê-lo. Mas naquela manhã, era mesmo D. Elisa quem antecipara o toque… lá fora, enormes e grossos pingos de água começavam a escorregar pelas janelas. O céu, tornara-se cinzento chumbo iluminado apenas por estrondosos relâmpagos coloridos. Pareciam rugir como leões enraivecidos e o vento, horas antes brisa, transformara-se em espiral ensurdecedora levando tudo à sua frente, ameaçando chegar rapidamente à cidade.
Paulinha olhou em frente para o pátio, transformado em pântano, e viu estarrecida o tronco da sua querida mangueira duplicar-se, sob a fúria de um relâmpago perdido. Jamais esqueceria esses momentos de horror!
- Minina, depressa, fuja para dentro da sua sala, venha aqui por dentro dos corredores e vá ter com a sua profissora. Ela está a reunir as criança toda e vai levá-las a casa no seu carro.
Uma tempestade tropical abatera-se repentinamente sobre Quelimane e sobre a Zambézia, e a professora Filomena [no tempo em que ser professora não era uma mera profissão mas um sacerdócio] sem levantar o pânico, lá ia dizendo às suas crianças de 5 e 6 anos que fizessem fila indiana, e se preparassem para abandonar a escola. Ordeiramente, por favor, que estava tudo bem, que iam jogar um jogo novo. Entraram para dentro do seu pequeno carro, tantas quantas pode levar, duma primeira vez… organizou-as por zonas da cidade onde moravam. As mais altinhas iam à frente, ao lado da professora, talvez duas ou mesmo três… Paulinha, era uma das que seguiu atrás, ao colo de outra menina… ao todo eram… perdera a conta, eram tantas, meu Deus! Nesse tempo, não havia cintos de segurança, e afinal, em tempo de guerra não se limpam armas.
Lá foram estrada fora, tal arca de Noé a motor, carregada de meninas e de chuvas torrenciais e ventos ciclónicos que teimosamente persistiam em não abrandar.
Uma a uma, foram chegando ao destino, até que Paulinha avistara já a esquina do monhê Choitran, o qual entretanto havia recolhido todo o seu precioso material.
Lá fora, as pessoas corriam desesperadamente, ensopadas até aos ossos, procurando abrigar-se conforme podiam.
Sentira um alívio enorme quando avistou debaixo de chuva, o seu Pinóquio, atrás do portão férreo do quintal, abanando a cauda e latindo de contentamento. Chegara a casa, finalmente!
Esperavam-na, D. Isabel, o seu tio António e também o mainato Isaías que dissera:
- Depressa minina, que se molha nesta chuva que até os cães a bebem toda… eu tinha dito à senhora para minina não sair hoje de casa…
- Paulinha, Paulinha, estás bem? Gritara D. Isabel, com a voz embargada de emoção e logo, acolhendo-a com um dos braços. Com o outro, tentava agarrar um guarda-chuva preto [a sua sombrinha amarela estava destinada aos dias tórridos] cujas varetas se dobravam face ao vento uivante.
- Obrigada, senhora professora, muito obrigada! Vá com cuidado, abençoada seja!
No dia seguinte parece que tudo terá voltado à normalidade, não obstante a reconstrução de alguns telhados mais frágeis. Paulinha recorda-se de ouvir comentar a sua tia Fernanda em algo como: - Até o telhado da fábrica de cerveja voou!
Muitos anos terão passado, parecem-me agora terem ocorrido numa outra dimensão espacial e temporal, mas o gesto heróico e humanitário da professora Filomena, esse, será sempre inolvidável e intemporal. Foi uma demonstração de amor para com as suas alunas, e o amor é intemporal.

Junho de 2014.







[1] Pequeno-almoço
[2] Tambores
[3] Empregada da menina, babá
[4] Empregado que lava e passa a ferro
[5] Dama e Vagabundo da Disney
[6] O cão de Paulinha, arraçado de Setter Irlandês
[7] Indiano
[8] Moeda de baixo valor
[9] Bolacha
[10] Traje nacional das mulheres indianas
[11] Bicicleta
[12] Grupo étnico da região norte de Moçambique, como Quelimane

terça-feira, 24 de junho de 2014

Carta aberta à minha família

Enquanto aguardo que a foto da minha mangueira chegue, tenho de ser paciente, pois ela vem de longe, terá mesmo de atravessar todo um continente para aqui chegar... aliás, é minha intenção povoar o presente blog com fotos inéditas da minha querida Terra... fotos que possam servir de moldura às estórias que vou rabiscando. 
Entretanto, gostaria de deixar claro que essas estórias moldadas da minha infância, são sobretudo escritas para os meus filhos.
Desde já os alerto para o seguinte: ainda que Cesáriamente falando Se eu não morresse, nunca! E eternamente buscasse a perfeição das coisas, ainda assim, jamais conseguiria aproximar-me da sombra da genialidade de um Mia Couto... embora escreva com o coração, jamais as minhas estórias terão a paixão de uma Paulina Chiziane...jamais nasceria em mim tamanha perfeição.
Peço-vos também, queridos filhos, que não me confundam com a Paulinha das estórias, ela é parte de mim, é certo, mas não sou eu... todos os restantes personagens, ainda que vos possam parecer familiares, não o são inteiramente... a minha ficção é consubstanciada na realidade, é certo, mas não de todo. 
Por isso, se algo não corresponder inteiramente ao vosso imaginário, peço-vos que não sejais tão críticos e que me perdoem. 

24-06-2014


sábado, 21 de junho de 2014

Claras em castelo e gemas de açúcar


D. Isabel, na pujança dos seus 54 anos era ainda uma avó jovem, de estatura
pequena e formas arredondadas, braços fortes e protectores, de doces olhos castanhos e um sorriso que emanava toda a bondade do mundo. Ternamente, olhava para dentro dos olhos de sua neta e suspirando de modo apreensivo, dizia:
– Paulinha, estás com pouco sangue nos olhos… vou preparar-te uma gemada!
Paulinha, acabara de completar 4 anos, menina travessa, de olhos castanhos amendoados que irradiavam a alegria e traquinice próprias da idade, resmungava:
– Mas eu não gosto nada de gemada! Não, não, não quero… e fugia descalça pelo quintal fora… corria em direcção ao horizonte, pulava, saltitava, cabriolava… mas voltava sempre para adormecer o seu cansaço no regaço de sua avó.
D. Isabel, embalava-a embevecida, com os seus braços fortes como quem segura a fragilidade de umas asas de anjo e aconchegava-a na cama.
Entretanto, Paulinha, com seus caracóis castanhos amêndoa de caju repousados numa almofada de linho, sonhava… sonhava que continuava a correr descalça entre nuvens de algodão, brancas e fofas, como claras em castelo.
– Acorda, Paulinha, vem ver o que te fiz! – dizia docemente D. Isabel, enquanto lhe acariciava os cabelos.
Passados tantos anos, sou capaz de jurar que continuo a sentir, vindo do fundo da cozinha de D. Isabel, a fragrância adocicada dos seus suspiros brancos e fofinhos como nuvens de algodão doce. Quase tão doce quanto o mel que transbordava dos seus olhos, quando olhava a neta.

09-04-2011



quinta-feira, 19 de junho de 2014

A árvore mangueira


"O vento a soprar gentilmente entre as tuas folhas, os teus odores, traz-me à memória outras vivências tão intensas como esta que agora sinto e quero partilhar - a minha doce infância, a minha terra distante."

Ana Paula Fogaça em Junho 2010
(4º curso de verão Biblioteca Algés-Centro Oeiras a Ler, sobre Violências, Pedagogias e Imaginários)

A árvore mangueira é o mote para o presente blog, dedicado em grande parte à minha doce infância. Para que a memória entre 1967 a 1972 em Quelimane, assim como os anos de 1973 a 1974 em Lourenço Marques (actual Maputo) nunca se percam.

Junho 2014