Decorria o ano de 1972 ou
talvez de 1973, de um qualquer mês entre Outubro a Março… difícil precisar
transcorridos tantos anos… Quelimane amanhecera mais uma vez, embalada pela
brisa suave do vento entre as folhagens dos seus altos coqueiros; o seu rio, baptizado
pelo Gama de Bons Sinais, despertara sob os primeiros raios ainda mornos do
astro rei, e Paulinha, como de costume, acordara muito depois do primeiro canto
do galo mor da capoeira do quintal de D. Isabel, já depois de esta ter tomado o
seu matabicho[1]
habitual… era o acordar habitual de mais um dia, o despertar normal de mais um
dia de escola para Paulinha, e de trabalho para a sua avó.
Em Quelimane, as manhãs
madrugam cedo, sendo habituais alguns eventos naturais extremos, como trovoadas
fortes e chuvas torrenciais. No entanto, nada anteciparia o cenário de algumas
horas mais tarde, apesar do rufo dos batuques[2]
que se faziam soar há muito, noite fora.
- Paulinha, despacha-te,
vamos chegar atrasadas! O teu tio António hoje não nos pode levar, temos de ir
a pé… dizia D. Isabel, com grande paciência. Pega na tua pasta da escola e
vamos!
- Senhora, deixe a minina hoje em casa a descansar…
irrompeu Maria, a macaiaia[3]
de Paulinha… e logo, o mainato[4]
Isaías:
- Minha Senhora, não vá hoje ao hospital!
- Mas o que é que deu em
vocês? Replicou admirada D. Isabel? Logo hoje que a Paulinha não está a fazer
birra para não ir à escola… e eu tenho de ir trabalhar, pois aquele Hospital… a
minha cozinha precisa de mim… os doentes precisam de mim! Mas eles já não a
ouviam, pois D. Isabel saíra apressadamente porta fora, levando a sua habitual e
carismática sombrinha amarela consigo. Paulinha, com o último botão da sua bata
branca por abotoar, seguira-lhe os passos, não se esquecendo da sua adorada
pasta escolar com a “Lili e o Viralata”[5] nela
pintados.
Entretanto, Pinóquio[6] habituado
pacientemente a aguardar pelas suas donas, a nova e a velha, parecia inquieto
nessa manhã…
No caminho para a escola [a
mais linda que alguma vez Paulinha veria em toda a sua vida] como
habitualmente, D. Isabel cumprimentava todos, sendo por todos cumprimentada, em
sinal de deferência é certo, mas também por merecer a simpatia colectiva. Ao
fundo da rua da sua casa, numa esquina, ficava o monhê[7]
Choitran, onde Paulinha adquirira o hábito de comprar por uma quinhenta[8] a
não menos habitual muchapala.[9]Fora
da loja, ao ar livre amontoavam-se as caixas de bananas, ananases,
pêras-abacate, mangas, papaias, cocos e tâmaras, entre tecidos coloridos para
sáris[10] e
bijuterias variadas. A fruta exalava um odor adocicado que contrastava com
outros mais quentes e fortes como o açafrão.
- Vó compras-me uma bolacha, compras?
- Agora não, Paulinha, no
regresso da escola. Vamos…
Prosseguiram em passo
apressado, até que avistaram vindo em sua direcção, na sua ginga[11]o
Julião, o ajudante de fiel do armazém do Hospital de Quelimane.
- Senhora, senhora, Julião
tratou de tudo, levou as batata, as cebola, o azeite, as garrafas do leite, tudo aquilo que
faz falta para a cozinha… a Maria Rita, a nova empregada, sabe ler e vai
separar as ementa das dieta das outra…
e Julião também não vai esquecer de partir os
bloco de gelo para as botija dos doentes… senhora, não precisa ir hoje!
- Mas vocês estão loucos?!
Bradara D. Isabel, visivelmente irritada. Em 30 anos de serviço, nunca faltei
por dá cá aquela palha, porque carga de água haveria hoje de ser diferente? Vai
lá andando que vou só deixar a miúda na escola e já lá vou ter… anda,
despacha-te!
Avistava-se agora a escola
de Paulinha, a escola primária Vasco da Gama, linda, toda branquinha, de telhado
avermelhado ondulado, escadaria clássica defronte ao edifício principal que
concentrava os serviços administrativos, este último ladeado por outros dois
enormes edifícios, cujas salas em comboio detinham extensas varandas cobertas no
exterior, e no interior, além das carteiras de bancos em madeira escorridos comuns, quadros de ardósia e demais material escolar. No tecto, as características
ventoinhas com as suas enormes pás giratórias que afugentavam o calor
abrasador. De uma maneira geral, a escola primava por linhas sóbrias, a lembrar
a arquitectura chã, mas ao mesmo tempo, de uma beleza externa quase barroca. Um
dos edifícios estava destinado às meninas e outro, aos meninos. Atrás, entre
ambos, um enorme pátio térreo com três enormes mangueiras, tendo uma delas, a
preferida de Paulinha, uma copa enorme. Quantas brincadeiras, correrias e
segredos guardavam as sombras dessas árvores, interrompidas apenas pelo toque do
sino que ecoava do edifício central, pesadamente e vagarosamente tocado pela
velha contínua, D. Elisa. A velha contínua [talvez não fosse assim tão velha!]
de bata branca e de lenço macua[12] à
cabeça, era altíssima e possuía duas pernas grossas como troncos de palmeira
que pesadamente arrastava, contrastando com a agilidade de seus longos braços.
Naquela manhã, tocava vigorosamente o sino e desviando o olhar para baixo dizia
a Paulinha: - Mas o que minina está aqui a fazer?! Porque não
está junto das suas companheiras e da sua profissora?
Não era a primeira vez que
Paulinha fugia da sala de aula, em direcção à casa do sino, empoleirando-se num
banquinho de madeira, tentando tocar o sino de forma a antecipar a hora do
intervalo. Não era a primeira vez que era repreendida por tentar fazê-lo. Mas
naquela manhã, era mesmo D. Elisa quem antecipara o toque… lá fora, enormes e
grossos pingos de água começavam a escorregar pelas janelas. O céu, tornara-se
cinzento chumbo iluminado apenas por estrondosos relâmpagos coloridos. Pareciam
rugir como leões enraivecidos e o vento, horas antes brisa, transformara-se em
espiral ensurdecedora levando tudo à sua frente, ameaçando chegar rapidamente à
cidade.
Paulinha olhou em frente para
o pátio, transformado em pântano, e viu estarrecida o tronco da sua querida
mangueira duplicar-se, sob a fúria de um relâmpago perdido. Jamais esqueceria
esses momentos de horror!
- Minina, depressa, fuja para dentro da sua sala, venha aqui por
dentro dos corredores e vá ter com a sua profissora.
Ela está a reunir as criança toda e vai
levá-las a casa no seu carro.
Uma tempestade tropical
abatera-se repentinamente sobre Quelimane e sobre a Zambézia, e a professora
Filomena [no tempo em que ser professora não era uma mera profissão mas um
sacerdócio] sem levantar o pânico, lá ia dizendo às suas crianças de 5 e 6 anos
que fizessem fila indiana, e se preparassem para abandonar a escola. Ordeiramente,
por favor, que estava tudo bem, que iam jogar um jogo novo. Entraram para
dentro do seu pequeno carro, tantas quantas pode levar, duma primeira vez…
organizou-as por zonas da cidade onde moravam. As mais altinhas iam à frente,
ao lado da professora, talvez duas ou mesmo três… Paulinha, era uma das que
seguiu atrás, ao colo de outra menina… ao todo eram… perdera a conta, eram
tantas, meu Deus! Nesse tempo, não havia cintos de segurança, e afinal, em
tempo de guerra não se limpam armas.
Lá foram estrada fora, tal
arca de Noé a motor, carregada de meninas e de chuvas torrenciais e ventos
ciclónicos que teimosamente persistiam em não abrandar.
Uma a uma, foram chegando
ao destino, até que Paulinha avistara já a esquina do monhê Choitran, o qual entretanto havia recolhido todo o seu
precioso material.
Lá fora, as pessoas
corriam desesperadamente, ensopadas até aos ossos, procurando abrigar-se
conforme podiam.
Sentira um alívio enorme
quando avistou debaixo de chuva, o seu Pinóquio, atrás do portão férreo do
quintal, abanando a cauda e latindo de contentamento. Chegara a casa,
finalmente!
Esperavam-na, D. Isabel, o
seu tio António e também o mainato Isaías
que dissera:
- Depressa minina, que se molha nesta chuva que até
os cães a bebem toda… eu tinha dito à senhora para minina não sair hoje de casa…
- Paulinha, Paulinha,
estás bem? Gritara D. Isabel, com a voz embargada de emoção e logo, acolhendo-a
com um dos braços. Com o outro, tentava agarrar um guarda-chuva preto [a sua
sombrinha amarela estava destinada aos dias tórridos] cujas varetas se dobravam
face ao vento uivante.
- Obrigada, senhora
professora, muito obrigada! Vá com cuidado, abençoada seja!
No dia seguinte parece que
tudo terá voltado à normalidade, não obstante a reconstrução de alguns telhados
mais frágeis. Paulinha recorda-se de ouvir comentar a sua tia Fernanda em algo
como: - Até o telhado da fábrica de cerveja voou!
Muitos anos terão passado,
parecem-me agora terem ocorrido numa outra dimensão espacial e temporal, mas o
gesto heróico e humanitário da professora Filomena, esse, será sempre inolvidável
e intemporal. Foi uma demonstração de amor para com as suas alunas, e o amor é
intemporal.
Junho de 2014.
[1] Pequeno-almoço
[2] Tambores
[3] Empregada da menina, babá
[4] Empregado que lava e passa a ferro
[5] Dama e Vagabundo da Disney
[6] O cão de Paulinha, arraçado de Setter Irlandês
[7] Indiano
[8] Moeda de baixo valor
[9] Bolacha
[10] Traje nacional das mulheres
indianas
[11] Bicicleta
[12] Grupo étnico da região norte de
Moçambique, como Quelimane