sexta-feira, 18 de julho de 2014

O golfinho e o filho do faroleiro

Reunidos dentro do farol, sentados na sua base quadrangular, com as perninhas à chinês, Ana aguardou que somente se ouvisse o silêncio dos olhos esbugalhados dos gaiatos imersos na curiosidade. Lá fora, apenas o murmurar das ondas beijando as rochas acariciavam o farol.

Era uma vez um jovem rapazinho, cujo pai era faroleiro no Farol de Santa Marta.

Em tempos idos, em que a luz do farol ainda funcionava a azeite, o faroleiro Ezequiel vivia com o seu filho pequeno, numa humilde casinha, mesmo ao lado do farol.

Era um trabalho bastante solitário, tal como solitárias eram também as brincadeiras do jovem rapazinho.

Um dia, estava o pequeno a atirar pequenas rochas, conchas e conchinhas ao mar, quando de súbito, avistou um golfinho que parecia nadar em sua direcção. Parecia querer chamar a atenção do petiz, pois saltava e nadava alegremente em círculos. Então o menino, sem medo, nadou até o animal e, gradualmente, foi ganhando a sua confiança. Até que o golfinho parou... foi então que o menino aproveitou para saltar para o seu dorso.

Juntos nadaram nas águas azuis-esverdeadas do oceano, e cortando as ondas passaram rente às pequenas embarcações dos pescadores, até que chegaram ao Farol da Guia.

Já o sol se deitara sobre o Atlântico, quando regressaram ao Farol de Santa Marta.

O menino agradeceu ao golfinho pela encantadora tarde e prometeu-lhe regressar todos os dias, enquanto estivesse de férias.

Porém, um desses dias, o menino adoeceu e teve de permanecer em casa, durante bastante tempo.

O golfinho não se esquecera do menino e insistentemente regressava ao local combinado, na esperança de encontrar o seu pequeno amigo humano. Mas o menino não aparecia…

Então o golfinho adoeceu e desatou a definhar… quase moribundo, nadou sem forças até ao farol, como se da última vez se tratasse, esperando ver o seu companheiro de aventuras…

Felizmente, o menino recuperou e nesse mesmo dia pediu ao pai, o faroleiro Ezequiel, que o deixasse brincar lá fora junto ao mar.

Quando o menino avistou o golfinho e se apercebeu que este nadava com grande dificuldade, precipitou-se ainda meio vestido para as ondas, nadando o mais depressa que podia em direcção ao seu amigo marinho. Logo o abraçou ternamente, prometendo dele cuidar. Quando o sal das suas lágrimas se confundiram com o da água do oceano, Tétis, a deusa do mar, compadeceu-se com o amor do rapazinho por um dos seus golfinhos.

Do alto do Farol de Santa Marta, Ezequiel o faroleiro pareceu avistar um menino no dorso de um lindo e alegre golfinho cinzento prateado nadando em direcção ao infinito.

Julho 2014 / Ana Paula Fogaça


segunda-feira, 14 de julho de 2014

A viagem ao Farol de Santa Marta continua…

Uma vez chegados ao farol mais emblemático de Cascais, aguardava-os Ana, a monitora museológica.

- Sejam bem-vindos ao Farol-Museu de Santa Marta! - Disse Ana, que os recebera na antiga bateria inferior.

Muito ordeiramente, par a par, lá foram em fila indiana conhecer o primeiro núcleo museológico, dedicado aos faróis portugueses. Num misto de tecnologia e História, Ana, lá ia explicando, perante as bocas abertas dos gaiatos, o que eram as lentes de Fresnel. Mereceu especial destaque, o painel do aparelho óptico central que estivera no Farol das Berlengas, com os seus 3,70m de altura. Quando Ana se colocou por trás da gigantesca lente, e os petizes viram a imagem da monitora aumentada, foi grande a gargalhada geral. Talvez tivesse sido esse o momento mais marcante, recordara mais tarde Salvador.

Seguidamente, passaram ao segundo núcleo museológico, dedicado à passagem de Santa Marta, através dos tempos, de forte a farol, até museu, mais recentemente.

Salvador bebia com muita atenção tudo o que Ana dizia sobre o antigo ofício de faroleiro: os instrumentos que se usara, o registo minucioso no seu diário das ocorrências, quer em dias de nevoeiro, como em noites iluminadas pelo brilho das estrelas.

Então, já sabem para que servem os faróis? - Perguntara-lhes Ana, despertando-lhes o interesse. - Quem acende e desliga a luz do farol? 
Sabem, os núcleos museológicos eram antigamente, as casas das famílias de faroleiros que por cá viviam.

Finalmente, subiram à bateria superior e daí puderam ver desenhado entre o mar e a marina, o farol mais bonito de Cascais.

- Tão alto! - Dizia Salvador, tentando avistar a lanterna vermelha do farol.

- Pois é Salvador, é alto, são quase vinte Salvadores empoleirados uns nos outros… dizia Ana, e prosseguia conduzindo o grupo que se precipitava para a porta do farol. E continuava: - Querem subir lá acima? Tenho tanto ainda para vos contar… mas agora, vamos subir, devagar e com cuidado, por favor… venham!

A vista lá em cima era tão deslumbrante, tão deslumbrante, que Salvador, já não via somente o que via… no varandim vermelho do farol, olhava no horizonte, onde o azul do mar se encontra e se confunde com o azul do céu, a linha arredondada da terra e sonhava… mas Ana, tal como a professora Elisabete, tantas vezes fizera na sala de aula, colhera-lhe os pensamentos e fazia-o regressar…

 - Salvador, vem, desce, vamos agora escutar uma história, queres?

(continua)

Julho, 2014.







quinta-feira, 10 de julho de 2014

Viagem ao Farol de Santa Marta

Este pequeno conto foi em 2011, dedicado aos meninos da Educadora Carla, da Escola Nossa Senhora de Assunção de Cascais.

Decorridos três anos, dedico-o também às minhas queridas colegas do Farol de Santa Marta, em homenagem aos dias felizes que por lá vivi.

Embora tivesse nascido em Cascais, o Salvador nunca antes vira um farol.
Tinha sido criado, e vivia ainda em Alcabideche, terra dos moinhos do poeta árabe Ibn Mucana, quando um dia, na escola, a sua professora anunciara aos meninos da sua turma do 2º ano, uma visita muito especial: iam ao farol mais emblemático de Cascais! Sim, esse mesmo, o Farol de Santa Marta!

Na sala de aula, reinava a excitação, e enquanto a professora Elisabete falava, Salvador já não a ouvia… fantasiava como seria esse farol, de que forma, de que cor… ouvira dizer que era alto. Hum… certamente não tão alto como os moinhos que se habituara a ver da janela do seu quarto, tendo como pano de fundo os contornos da serra - pensou.

Quem viveria nele? Que histórias teria esse farol para contar? O avô Manel, dizia sempre, que faróis eram como “vigilantes da noite, sentinelas do mar”: manhãs de nevoeiro, noites de tempestade, navios em apuros, naufrágios que não chegaram a acontecer, horas de solidão, sou comandante, sou capitão, sou pirata espanhol num galeão à deriva? Não, sou apenas faroleiro num farol encantado, preso nas ondas de um mar salgado.

Assim velejava o pensamento de Salvador, ligeiro como um barco de velas pandas, desses que vemos ao largo da baía de Cascais em tardes de Estio e vento, quando subitamente, é arrancado do seu sonho, pela voz da professora Elisabete:

- Percebeste, Salvador, as regras de bom comportamento dentro de um museu?

- Museu?! - perguntou admirado Salvador. Para que está a professora a falar de um museu?! Não íamos a um farol? - Interrogou-se Salvador.

Eis chegado o grande dia! Um dia, que amanheceu cedo, bem cedinho, e com ele, os primeiros raios de sol, atravessaram o vidro da janela do quarto de Salvador, despertando-o do seu sonho.

De pequenos olhos castanhos, brilhantes de curiosa avidez, volta a perguntar-se, como será esse farol…

Estão já reunidos todos os meninos do 1º e do 2º ano; os do 3º e 4º ano iriam num outro dia. Aos pares, em fila, à entrada do autocarro, lá iam, subindo ritmadamente os degraus daquele, sob estreita vigilância das educadoras.

- Bom dia, Sr. motorista! - Diziam bem alto, mal avistavam a habitual figura nessas andanças dos passeios escolares que fazia as delícias da pequenada - era Carlos, o motorista!

Depois de devidamente acomodados, sem esquecer as normas de segurança, os gaiatos despediam-se dos seus pais que permaneciam teimosamente, coração na boca, sem despregarem os olhos do autocarro… este, ia ficando cada vez mais pequeno, até ser totalmente engolido pelo horizonte.

Na lembrança recente dos pais, ficavam pequenitos braços que se agitavam, pequenitas mãos que se despediam alegremente em múltiplos acenos e beijos compartidos e atirados através dos vidros das janelas do autocarro. Sorrisos e gargalhadas largas, estampadas em rostos que não cabiam em si de felicidade.

A viagem não demoraria mais do que 20 minutos, tempo mais do que suficiente para os miúdos alegrarem ainda mais a manhã de Carlos, o motorista.

- 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 - Viva a professora Elisabete!

- Olhem, olhem meninos, estamos a chegar à Boca do Inferno! – Dizia a professora Elisabete.

- Que mar tão bonito! - Exclamaram quase todos em uníssono.

Alguns metros mais, e eis que surgia como num postal desenhado, num esporão rochoso, vigilante entre palmeiras e o mar azul esverdeado, o Farol de Santa Marta.
De corpo robusto prismático, numa torre quadrangular de alvenaria branca, revestida a azulejos, com as suas duas faixas azuis inconfundíveis, elevando-se a 20 metros, quase tocando o azul do céu com a sua lanterna vermelha.

O deslumbramento rapidamente se apodera de Salvador e dos seus colegas. Todos gritaram a uma só voz, entre ruidosas palmas: - Viva o Farol de Santa Marta!


Cascais, 2011


domingo, 6 de julho de 2014

Mangas verdes com sal [ou de como é bela a mulher macua]

Se havia algo de que Paulinha se recordava da sua infância, era do inesquecível e acre sabor, na boca a arder, das mangas verdes acabadinhas de apanhar da árvore, repartidas a canivete.

Nunca as haveria de provar, senão pela mão de Cristina, nome demasiado ocidentalizado, da sua macaiaia[1] preferida, sendo no entanto, bastante comum entre estas.

Cristina, era certamente, ainda muito jovem, menina-mulher macua[2] de origem, cuja característica principal, além da sua peculiar beleza assumida, era o seu encantador sorriso aberto e generoso, aliás, como tudo naquela Terra.

De pele escura, brilhante como ébano, exalando um suave odor a coco, detinha um belo rosto africano, invulgarmente aveludado pelo mussiro[3]. No meio, um par de olhos negros carvão, tão brilhantes como o Cruzeiro do Sul.

Enrolava-se em capulanas[4] de padrão colorido, sabiamente cingindo a cintura e coxas, deixando mostrar sempre uma graciosa blusa de mangas curtas, certamente de tradição muçulmana.

Um lenço, condizente com a capulana, irrepreensivelmente colocado à maneira macua, ocultava um cabelo africano trabalhado com tranças pequenas.

Enfeitando o pescoço e os braços, colares e pulseiras de inúmeras missangas de cor viva, indiciavam os ritos de iniciação feminina.

Nos pés, quando não se encontravam desnudos, trazia as características sandálias plásticas, abertas, também coloridas, compradas no bazar[5], que teimavam em gretar-lhe os calcanhares, quer se tratasse da época seca ou da das chuvas.

Ficava doida de alegria, sempre que a Mãe Terra a beijava com as suas lágrimas cálidas; então, Cristina descalçava-se e dançava sob a chuva tropical; erguia os braços e sentia o cheiro fértil da terra molhada. Paulinha aprendera com ela e imitava-a.

Aprendera a subir agilmente às mangueiras, a apanhar as mangas ainda verdes e a comê-las com sal.

- Minina, passop[6], não pode comer tanto assim…despois, vai ficar com dor na barriga… e D. Isabel, vai ralhar!

Aprendera com Cristina histórias, muitas histórias, não dessas de fadas e princesas, mas do seu povo; Sobre como tinha sido criado o mundo e o homem… nos primórdios, tudo tinha acontecido no Monte Namuli[7], a norte da Zambézia.

Aprendera em como o seu povo ancestral macua, venerava esse monte, a água das chuvas e dos grandes lagos, como o Niassa[8].

Paulinha, escutava-a encantada, com enorme êxtase, maior do que aquele que sentia quando ritualmente, ao fim do dia, D. Isabel lhe perguntava: - O Capuchinho Vermelho ou a Gata Borralheira?

Mas Cristina, mulher-menina, também gostava e queria aprender; ouvia atentamente as letras que Paulinha desenhava na terra húmida do quintal…

- Não, Cristina, não sei ainda, como se escreve o teu nome, vamos ter que perguntar à avó…


Julho 2014.





[1] Empregada da menina, babá.
[2] De etnia macua, tribo de origem banta, a norte de Quelimane.
[3] Massa branca e espessa, embelezante do rosto das mulheres de etnia macua, feita a partir do caule de uma planta com o mesmo nome.
[4] Pano tradicional Moçambicano com que as mulheres cingem o corpo; pode ser usado como saia.
[5] Mercado.
[6] Cuidado.
[7] Monte Namuli, com cerca de 2.419 m de altura, situado na Serra do Gurué, a norte da província da Zambézia., 
[8] Lago Niassa, localizado no Vale do Rift, entre o Malawi, a Tanzânia e Moçambique.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

O pajem alcoviteiro

Quem me conhece sabe que algumas das minhas paixões literárias são as histórias e lendas da História de Portugal, os nossos contos populares, a mitologia greco-romana e acima de tudo, o Ovídio das Metamorfoses.

Há tempos atrás, pediram-me que juntasse tudo num pequeno conto… mas o que têm essas coisas tão díspares em comum? A tradição oral, a intemporalidade, o encantamento…

Deixo-vos com O pajem alcoviteiro [de Alcobaça]…

Conta-se que no reinado de D.Afonso IV, vivia um pajem, rapaz muito alcoviteiro…

As suas funções extravasavam em muito as de um pajem, pois estava sempre com os seus mexericos, a arranjar grande confusão entre os fidalgos do reino. Ouvia aqui, acrescentava ali e repetia amiúde, acolá.

Adorava perseguir o príncipe D. Pedro e a sua bela amada Inês, até à Fonte dos Amores e deliciava-se escutando, escondido entre os arbustos, as juras de amor trocadas entre os amantes. Depois, a troco de alguns reais, ia correndo contar aos fidalgos de D. Afonso IV, tudo o que vira e ouvira. Estes últimos, logo aproveitavam para conjurar contra os amores proibidos de Pedro e Inês, a bem da nação, claro… como se ódios, violências e morte, pudessem se sobrepor a tão grande amor!

Uma bela manhã primaveril, estava o pajem alcoviteiro atrás da parelha de apaixonados, quando a sua curiosidade repara num poço que havia meio dissimulado entre as flores, na quinta junto ao Mondego, cenário dos encontros clandestinos.

Aproxima-se o pajem do poço e neste debruçando-se, atraído pela imagem meio distorcida, contudo bela, pareceu-lhe ver um jovem, lá no fundo,  mais ou menos da sua idade. Resolveu então gritar-lhe: - Olá!! e logo julgou que alguém lhe respondia: - Oláaaaaa! Inclinou-se um pouco mais e catrapum – caiu dentro do poço, tal Frei João dentro do caldeirão!!

Tal como se formos à cozinha do Mosteiro de Alcobaça visitar, se formos com cuidadinho… escondido no caldeirão, lá estará Frei João a espreitar! também se visitarmos a Quinta das Lágrimas, ainda hoje parecer-nos-á ecoar um jovem - Oláaaaa!


Moral do conto: Coitado do alcoviteiro, a curiosidade acabou por enredá-lo na sua própria teia. 

Julho de 2014

terça-feira, 1 de julho de 2014

Um conto infantil com fantoches

Caros leitores,

Conforme tenho dito à minha querida filha os meus contos, pelo menos os da "Paulinha", embora relatem excertos de uma doce infância, não são de modo algum para crianças.

Para crianças é por exemplo este conto com fantoches que agora vos deixo, para que o leiam aos vossos filhos. Foi escrito em 2010, para a Biblioteca Infantil e Juvenil de Cascais, para a "Hora do conto" sob a temática de Fadas e Princesas.  Poderá ser teatralizado com fantoches ou personagens de carne e osso.

Personagens:

  1. Rei
  2. Princesa Miriam
  3. Gato Preto
  4. Ovelha
  5. Sapo
  6. Bruxo Malvado



Há muitos, muitos anos, existiu um reino governado pelo seu monarca.
O rei era viúvo e vivia num castelo com a sua filha, uma linda princesa de nome Miriam, e com o seu gato preto.

O gato preto, mais não era do que o seu leal conselheiro, transformado em gato. Havia sido transformado nesse animal pelo anterior conselheiro do rei, um bruxo malvado. Este último, desagradado com o facto do rei o expulsar das terras do reino, prometera voltar e vingar-se! 

Assim, transformou o novo conselheiro, um homem sábio e sensato, da confiança do monarca, num gato preto! O gato no entanto, conservava a característica humana de saber falar e assim poder continuar a orientar o rei nas decisões difíceis. Um dia, o gato preto sugeriu ao rei que este promulgasse em edital espalhado pelo reino em como ofereceria a mão da princesa e parte das suas terras reais, a quem conseguisse quebrar o feitiço e o transformasse novamente em conselheiro.

Um belo dia, apareceu no castelo uma ovelha que dizia conseguir esse feito! Para espanto de todos, a ovelha também falava!
Admirado, o rei perguntou-lhe:
- Ovelhinha, diz-me, como consegues falar?
Então a doce ovelhinha respondeu-lhe:
- Porque sou um pastor a quem o bruxo malvado transformou em ovelha.
O rei prosseguiu:
- E como pensas tu conseguir transformar o meu gato preto, aliás o meu leal conselheiro em homem, se tu próprio estás também  transformado numa ovelha??
Calmamente, a ovelha respondeu-lhe:
- Sua majestade, o segredo está na confiança, em acreditar. Trago-te aqui um sapo (retirou entretanto, de um saco, um sapo verde) para desposar a princesa Miriam.
O rei gritou indignado:
- Um sapo? Qual sapo...? Casar com a minha filha, mas tu és louca ovelha?
Mas a ovelha insistiu:
- Se a princesa casar com este sapo, então o feitiço quebrar-se-á e o gato preto voltará à forma humana e recuperarás o teu leal conselheiro.
Foi uma risada geral por toda a corte, não só do rei, do gato preto, digo do conselheiro, como de todos aqueles que rodeavam o monarca.

Apenas a princesa Miriam acreditou nas palavras da doce ovelhinha e voltou-se para o Rei dizendo:
- Meu pai, não te consigo explicar mas acredito nas palavras deste simples pastor. Casar-me-ei com o sapo o mais breve possível.
Resignado, o rei deu logo instruções para que se iniciassem os preparativos para a boda, visto ser esse o desejo da sua amada filha.

O dia do casamento real chegou e lá estava a par da princesa Miriam, o sapo verde!
Então, a princesa assustou-se quando ouviu o sapo dizer-lhe baixinho:
- Dá-me um beijo minha Princesa!
A Princesa assustada e nervosa, disse-lhe com a voz trémula:
- Mas…tu também falas?
- Sim doce princesa, por favor confia em mim.
E então, a princesa anuiu:
- Sim, confio. E gentilmente, beijou-o na cabeça.
De repente, algo de extraordinário aconteceu:
O sapo transformou-se num jovem belo e viril… que mais não era do que o filho do pastor.
Também a ovelha retornou à forma humana de pastor, pai do jovem outrora sapo!

As transformações não acabaram por aí: para grande espanto do rei, da princesa e de todos os seus súbditos, o conselheiro, então gato preto, deixou de o ser e voltou a ser o conselheiro do rei!

Foi então que o pastor, antiga ovelhinha, explicou a todos:
- Sabem, o bruxo malvado, invejoso por o rei ter eleito outro conselheiro, procurou o meu filho que é jovem e vigoroso, pedindo-lhe por vingança, que raptasse a princesa num dos seus habituais passeios pelo campo e a trancasse para sempre...
E continuou:
- Como ele não concordou com tamanha malvadez, então transformou-o num sapo verde, e a mim em ovelha! O feitiço somente se quebraria no dia em que o sapo fosse beijado por uma princesa. O mesmo seria válido para o conselheiro, que deixaria de ser gato e voltaria à forma humana.

Assim aconteceu, tudo voltaria ao normal. O jovem pastor casou mesmo com a princesa Miriam, herdando grande parte das terras do reino e viveram felizes para sempre!

Quanto ao bruxo malvado…vendo que o seu plano não tinha conseguido vingar, abandonou o reino para sempre.

Vitória , Vitória, acabou-se a história!

Moral da história:
“ Por vezes na vida, é preciso confiar e acreditar para que as coisas se tornem realidade”, foi o que fez a princesa Miriam.


 13 de Maio de 2010





    






sábado, 28 de junho de 2014

O ciclone

Decorria o ano de 1972 ou talvez de 1973, de um qualquer mês entre Outubro a Março… difícil precisar transcorridos tantos anos… Quelimane amanhecera mais uma vez, embalada pela brisa suave do vento entre as folhagens dos seus altos coqueiros; o seu rio, baptizado pelo Gama de Bons Sinais, despertara sob os primeiros raios ainda mornos do astro rei, e Paulinha, como de costume, acordara muito depois do primeiro canto do galo mor da capoeira do quintal de D. Isabel, já depois de esta ter tomado o seu matabicho[1] habitual… era o acordar habitual de mais um dia, o despertar normal de mais um dia de escola para Paulinha, e de trabalho para a sua avó.
Em Quelimane, as manhãs madrugam cedo, sendo habituais alguns eventos naturais extremos, como trovoadas fortes e chuvas torrenciais. No entanto, nada anteciparia o cenário de algumas horas mais tarde, apesar do rufo dos batuques[2] que se faziam soar há muito, noite fora.
- Paulinha, despacha-te, vamos chegar atrasadas! O teu tio António hoje não nos pode levar, temos de ir a pé… dizia D. Isabel, com grande paciência. Pega na tua pasta da escola e vamos!
- Senhora, deixe a minina hoje em casa a descansar… irrompeu Maria, a macaiaia[3] de Paulinha… e logo, o mainato[4] Isaías:
 - Minha Senhora, não vá hoje ao hospital!
- Mas o que é que deu em vocês? Replicou admirada D. Isabel? Logo hoje que a Paulinha não está a fazer birra para não ir à escola… e eu tenho de ir trabalhar, pois aquele Hospital… a minha cozinha precisa de mim… os doentes precisam de mim! Mas eles já não a ouviam, pois D. Isabel saíra apressadamente porta fora, levando a sua habitual e carismática sombrinha amarela consigo. Paulinha, com o último botão da sua bata branca por abotoar, seguira-lhe os passos, não se esquecendo da sua adorada pasta escolar com a “Lili e o Viralata”[5] nela pintados.
Entretanto, Pinóquio[6] habituado pacientemente a aguardar pelas suas donas, a nova e a velha, parecia inquieto nessa manhã…
No caminho para a escola [a mais linda que alguma vez Paulinha veria em toda a sua vida] como habitualmente, D. Isabel cumprimentava todos, sendo por todos cumprimentada, em sinal de deferência é certo, mas também por merecer a simpatia colectiva. Ao fundo da rua da sua casa, numa esquina, ficava o monhê[7] Choitran, onde Paulinha adquirira o hábito de comprar por uma quinhenta[8] a não menos habitual muchapala.[9]Fora da loja, ao ar livre amontoavam-se as caixas de bananas, ananases, pêras-abacate, mangas, papaias, cocos e tâmaras, entre tecidos coloridos para sáris[10] e bijuterias variadas. A fruta exalava um odor adocicado que contrastava com outros mais quentes e fortes como o açafrão.
- compras-me uma bolacha, compras?
- Agora não, Paulinha, no regresso da escola. Vamos…
Prosseguiram em passo apressado, até que avistaram vindo em sua direcção, na sua ginga[11]o Julião, o ajudante de fiel do armazém do Hospital de Quelimane.
- Senhora, senhora, Julião tratou de tudo, levou as batata, as cebola, o azeite, as garrafas do leite, tudo aquilo que faz falta para a cozinha… a Maria Rita, a nova empregada, sabe ler e vai separar as ementa das dieta das outra… e Julião também não vai esquecer de partir os bloco de gelo para as botija dos doentes… senhora, não precisa ir hoje!
- Mas vocês estão loucos?! Bradara D. Isabel, visivelmente irritada. Em 30 anos de serviço, nunca faltei por dá cá aquela palha, porque carga de água haveria hoje de ser diferente? Vai lá andando que vou só deixar a miúda na escola e já lá vou ter… anda, despacha-te!
Avistava-se agora a escola de Paulinha, a escola primária Vasco da Gama, linda, toda branquinha, de telhado avermelhado ondulado, escadaria clássica defronte ao edifício principal que concentrava os serviços administrativos, este último ladeado por outros dois enormes edifícios, cujas salas em comboio detinham extensas varandas cobertas no exterior, e no interior, além das carteiras de bancos em madeira escorridos comuns, quadros de ardósia e demais material escolar. No tecto, as características ventoinhas com as suas enormes pás giratórias que afugentavam o calor abrasador. De uma maneira geral, a escola primava por linhas sóbrias, a lembrar a arquitectura chã, mas ao mesmo tempo, de uma beleza externa quase barroca. Um dos edifícios estava destinado às meninas e outro, aos meninos. Atrás, entre ambos, um enorme pátio térreo com três enormes mangueiras, tendo uma delas, a preferida de Paulinha, uma copa enorme. Quantas brincadeiras, correrias e segredos guardavam as sombras dessas árvores, interrompidas apenas pelo toque do sino que ecoava do edifício central, pesadamente e vagarosamente tocado pela velha contínua, D. Elisa. A velha contínua [talvez não fosse assim tão velha!] de bata branca e de lenço macua[12] à cabeça, era altíssima e possuía duas pernas grossas como troncos de palmeira que pesadamente arrastava, contrastando com a agilidade de seus longos braços. Naquela manhã, tocava vigorosamente o sino e desviando o olhar para baixo dizia a Paulinha: - Mas o que  minina está aqui a fazer?! Porque não está junto das suas companheiras e da sua profissora?
Não era a primeira vez que Paulinha fugia da sala de aula, em direcção à casa do sino, empoleirando-se num banquinho de madeira, tentando tocar o sino de forma a antecipar a hora do intervalo. Não era a primeira vez que era repreendida por tentar fazê-lo. Mas naquela manhã, era mesmo D. Elisa quem antecipara o toque… lá fora, enormes e grossos pingos de água começavam a escorregar pelas janelas. O céu, tornara-se cinzento chumbo iluminado apenas por estrondosos relâmpagos coloridos. Pareciam rugir como leões enraivecidos e o vento, horas antes brisa, transformara-se em espiral ensurdecedora levando tudo à sua frente, ameaçando chegar rapidamente à cidade.
Paulinha olhou em frente para o pátio, transformado em pântano, e viu estarrecida o tronco da sua querida mangueira duplicar-se, sob a fúria de um relâmpago perdido. Jamais esqueceria esses momentos de horror!
- Minina, depressa, fuja para dentro da sua sala, venha aqui por dentro dos corredores e vá ter com a sua profissora. Ela está a reunir as criança toda e vai levá-las a casa no seu carro.
Uma tempestade tropical abatera-se repentinamente sobre Quelimane e sobre a Zambézia, e a professora Filomena [no tempo em que ser professora não era uma mera profissão mas um sacerdócio] sem levantar o pânico, lá ia dizendo às suas crianças de 5 e 6 anos que fizessem fila indiana, e se preparassem para abandonar a escola. Ordeiramente, por favor, que estava tudo bem, que iam jogar um jogo novo. Entraram para dentro do seu pequeno carro, tantas quantas pode levar, duma primeira vez… organizou-as por zonas da cidade onde moravam. As mais altinhas iam à frente, ao lado da professora, talvez duas ou mesmo três… Paulinha, era uma das que seguiu atrás, ao colo de outra menina… ao todo eram… perdera a conta, eram tantas, meu Deus! Nesse tempo, não havia cintos de segurança, e afinal, em tempo de guerra não se limpam armas.
Lá foram estrada fora, tal arca de Noé a motor, carregada de meninas e de chuvas torrenciais e ventos ciclónicos que teimosamente persistiam em não abrandar.
Uma a uma, foram chegando ao destino, até que Paulinha avistara já a esquina do monhê Choitran, o qual entretanto havia recolhido todo o seu precioso material.
Lá fora, as pessoas corriam desesperadamente, ensopadas até aos ossos, procurando abrigar-se conforme podiam.
Sentira um alívio enorme quando avistou debaixo de chuva, o seu Pinóquio, atrás do portão férreo do quintal, abanando a cauda e latindo de contentamento. Chegara a casa, finalmente!
Esperavam-na, D. Isabel, o seu tio António e também o mainato Isaías que dissera:
- Depressa minina, que se molha nesta chuva que até os cães a bebem toda… eu tinha dito à senhora para minina não sair hoje de casa…
- Paulinha, Paulinha, estás bem? Gritara D. Isabel, com a voz embargada de emoção e logo, acolhendo-a com um dos braços. Com o outro, tentava agarrar um guarda-chuva preto [a sua sombrinha amarela estava destinada aos dias tórridos] cujas varetas se dobravam face ao vento uivante.
- Obrigada, senhora professora, muito obrigada! Vá com cuidado, abençoada seja!
No dia seguinte parece que tudo terá voltado à normalidade, não obstante a reconstrução de alguns telhados mais frágeis. Paulinha recorda-se de ouvir comentar a sua tia Fernanda em algo como: - Até o telhado da fábrica de cerveja voou!
Muitos anos terão passado, parecem-me agora terem ocorrido numa outra dimensão espacial e temporal, mas o gesto heróico e humanitário da professora Filomena, esse, será sempre inolvidável e intemporal. Foi uma demonstração de amor para com as suas alunas, e o amor é intemporal.

Junho de 2014.







[1] Pequeno-almoço
[2] Tambores
[3] Empregada da menina, babá
[4] Empregado que lava e passa a ferro
[5] Dama e Vagabundo da Disney
[6] O cão de Paulinha, arraçado de Setter Irlandês
[7] Indiano
[8] Moeda de baixo valor
[9] Bolacha
[10] Traje nacional das mulheres indianas
[11] Bicicleta
[12] Grupo étnico da região norte de Moçambique, como Quelimane